O que Caetano Veloso tem a ensinar ao Rock’n’Roll? Em seu novo disco, Cê (2006), o compositor reuniu uma banda para cantar de forma direta letras agressivas e cruas que falam de temas relevantes. Tenho sentido muita falta disso tanto no Rock quanto na MPB. Os assuntos são o relacionamento amoroso e o sexo, temas de sempre, mas abordados de forma muito original.
Não se trata da paixão apenas, nem de sexo explícito, mas da relação amorosa no que ela tem de violência, sujeira e corporeidade. São os cheiros, são os suores, são os líquidos, além do enlevo. É a pica, é a boceta e todos os assuntos baixos, presentes neste disco de um artista "mainstream", que fala de temas rechaçados pela mídia; relegados a canais e publicações de sexo explícito ou ao limite das quatro paredes.
Caetano trata desse assunto complicado que se tem como resolvido no Brasil: a liberação sexual. Somos todos bem resolvidos sexualmente, felizes e tranqüilos em relação à nossa vida amorosa. Assim mostram as campanhas de turismo, as novelas, filmes e seriados de TV. Será?
Ouvir Cê nos faz lembrar de que vivemos em um país machista e moralista, em que deusas do sexo posam de meninas virtuosas. Um país em que se leiloam "piercings" de boceta para a caridade! Pois posar nua só faz sentido aqui se for em prol de um objetivo maior. A nudez e o sexo em si continuam a ser considerados coisas baixas e sujas. Para que se justifiquem, é preciso algo mais: o amor, a família, a maternidade, o dinheiro, a carreira e, atualmente, a caridade... O Brasil acaba de inaugurar era da vagina com responsabilidade social.
No Brasil as mulheres são tratadas pela grande mídia como pedaços de carne e parecem sentir-se bem no papel, desde que fique claro que, no fundo, no fundo, têm conteúdo, almejam respeito artístico e, no futuro, pretendem constituir família e serem mães virtuosas. Os homens são todos “macho men” sem cérebro que se comportam como bestas no cio 24 por dia até encontrarem sua amada, capaz de redimí-los e mostrar-lhes os segredos do amor.
Resultado: o sexo na música brasileira é um assunto quase sempre romantizado ou reduzido a cafajestagem, às vezes divertida, mas digna de um garoto de 14 anos. A abordagem é, em geral, conservadora, infantil e moralista, como mostra o livro recém lançado: "História sexual da MPB - A evolução do amor e do sexo na canção brasileira" (Editora Record, R$ 63,90, 586 páginas) de Rodrigo Faour. Vale a pena ler.
“Woman is the nigger of the world” disse John Lennon em sua música genial, que denunciava a repressão da sexualidade feminina. Ainda hoje, a canção incomoda como o disco de Caetano, que rejeita a deificação da maternidade e da mulher (“Homem”), fala da dificuldade do amor e do sexo (“Deusa urbana”) e às vezes é puramente ódio, sem qualquer esperança redentora, como num relacionamento que termina muito mal (“Ódio”).
Em suma: o disco fala da musa sem deixar de lembrar que ela tem buço (“Musa híbrida”). Não simplifica nada, não oferece soluções fáceis, não nos poupa dos detalhes embaraçosos, não resolve os conflitos. É um trabalho marcado pela tensão, com muitos climas hipnóticos (à la Sonic Youth) e letras cheias de contradições. Nem sexo explícito, nem amor romântico: simplesmente humano (com o perdão pelo clichê).
Caetano louva o amor nas alturas, mas não deixa de colocar sua rôla para fora da calça. Como sempre, toca em questões complicadas e abre um assunto. Quem souber compreender, que siga o mestre ou deixe para lá e ouça o último e chatíssimo disco do Chico Buarque, Carioca (2005), musicalmente interessante, mas vazio; sem muita coisa para dizer.
Caetano ainda sabe onde encontrar assunto e mostra a todos que a forma canção tem muito a oferecer. Chico Buarque não. Provavelmente, vai se tornar músico de Jazz instrumental e continuar a escrever belos livros. Na literatura, tem muito a dizer, mas na música, corre o risco de virar uma caricatura de si mesmo. Na melhor das hipóteses, está em processo de autofagia e produziu um disco ensimesmado (como faz notar Daniel Brazil, em sua resenha na Revista Música Brasileira)
Incapaz de repetir a si mesmo (por isso registro aqui minha admiração), torna pública sua crise criativa em músicas broxantes de letras repetitivas e melodias geniais. Dá vontade de pedir para ele ficar calado e só tocar. Outro Chico se anuncia? Um Charlie Hunter brasileiro, cheio de criatividade? Aguardemos.
Brochar? Sem problemas, isso acontece com todo mundo. O valor do disco de Chico Buarque está justamente aí, nessa coragem de brochar em público. Alguém há de reanimar o moço: não faltarão voluntários ou voluntárias, a escolher. Caetano, de outro lado, exibe, altivo, o mastro em que tremula a bandeira da canção popular brasileira, agora alimentada pela agressividade do Rock.
Para voltar a falar para todos, como já fez um dia, e resistir ou repensar a segmentação desse mundo globalizado aos pedaços (veja o texto "A morte da canção"), a música precisa acertar o passo com os assuntos do tempo. Hoje, as questões mais importantes são existenciais e não políticas ou econômicas. A articulação entre música e política, que se deu no Rock e na MPB dos anos 60 e 70, precisa ser substituída por outra equação que inclua, em seu centro, problemas existenciais, sexuais, de gênero, todos, quase sempre ignorados ou relegados ao segundo plano pela geração anterior (salvo exceções honrosas).
Hoje, foder é mais importante do que votar. Vamos falar então de amar e foder. A questões pessoais e existenciais foram colonizadas pela grande mídia e pelas empresas. Tornaram-se problemas de qualidade de vida, stress, estratégia de carreira e planejamento do futuro; além de tema de livros de auto-ajuda e palestras de filosofia que ensinam a ser feliz.
Mais do que nunca, os problemas existenciais fazem parte do sistema capitalista. São assunto de seminários e publicações de negócios, capa de revistas semanais e editoriais dos jornais da noite. Por fazerem parte do sistema de exploração, explorar a contradição entre sua racionalidade e a lógica do capitalismo ganha grande potencial emancipatório. Pode-se tentar edificar, a partir dessas referências, assuntos comuns que levem à construção de um ideal de mundo.
É preciso mostrar a incompatibilidade entre o trabalho capitalista, que se estende por cada vez mais horas, e o ideal de qualidade de vida. Também com o ideal de felicidade pessoal, que deve incluir, segundo a cartilha atual, a convivência com amigos e família, além de uma vida sexual espontânea e não mecanizada. Foi o que fizeram os surrealistas no começo do século e, depois, os adeptos do amor livre, mas sem conseguir ligar esses temas e os problemas políticos e econômicos. Esse é o desafio de hoje.
É preciso recuperar a ligação entre sexo e revolução, entre liberdade sexual e um novo ideal de mundo, sem a ilusão de que esse mundo novo se faz apenas de amor e fraternidade. Isso aprendemos com os "hippies" nos anos 60. Como articular tudo isso às questões econômicas e políticas? Uma pista: todos estes problemas estão diretamente relacionados com a esfera do trabalho que, ainda hoje, oprime e preocupa toda a humanidade. Há muito a se fazer e parte da solução, desconfio, deve ser pensada na contradição entre sexo e trabalho capitalista.
Nem a música nem a política de esquerda têm conseguido colocar o problema corretamente. Na minha opinião, Caetano está no caminho e Chico perdeu a mão. Virou um clássico, ou seja, morreu... pelo menos até o próximo disco. Não devemos subestimar esses sessentões geniais.
:: postado por Rodrigo Celso - eugarimpo@hotmail.com
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