05 abril, 2007

Cadê o bilau do Nicolau? Voltou para a Selva? [“Percy”, The Kinks]

:: Rodrigo Celso

Essa é para quem gosta de trash e odeia a humanidade (vou explicando aos poucos...): “Percy” (1971), filme de Ralph Thomas com trilha sonora dos Kinks.

A história já diz tudo: cientistas desenvolvem uma técnica revolucionária para transplante de pênis e esperam, ansiosamente, por um paciente em que possam testar suas habilidades. Um acidente bizarro faz com que Edwin Anthony perca seu membro viril e se torne o candidato ideal para protagonizar esse momento, histórico para a evolução da cirurgia.

Numa operação de sucesso, Edwin recebe seu novo meninão que, daí em diante, será motivo de sua obsessão. A partir daquele momento, seu objetivo na vida será descobrir a identidade do dono original de seu mastro e, de quebra, testar o besugo com todas as suas ex-amantes. Fato interessante: ao longo do filme, a moças, sempre atentas e detalhistas, não esconderão seu espanto ao reconhecer o imponente gurizão, conhecido de longa data, entre as pernas de outro varão.

No pano de fundo, a esposa de Erwin, mulher ingrata, trai sua confiança com um outro homem. Nesse meio tempo, nosso herói encontra o amor nos braços de uma das ex-amantes do antigo dono de seu ponteiro. A esposa infiel, desconfiada do que se passa com seu marido, fareja dinheiro ao perceber que toda a imprensa britânica deseja saber a identidade do transplantado, mantida em sigilo. O marido, que acabara de abandonar, tornara-se o homem do bilau de um milhão de libras. Qual será o desfecho dessa história eletrizante?

Não vou contar para não estragar a beleza do filme, lançado em DVD na Inglaterra. Além do argumento genial e atores de primeira linha, “Percy", uma mistura de “Os Trapalhões” com pornochanchada, tem sua trilha sonora composta pelos geniais The Kinks. A banda, da mesma época de Beatles e Rolling Stones, é mais conhecida por canções como “Lola” e “You Really Got Me”, regravadas algumas dezenas de vezes.

“Percy” é um de seus discos menos conhecidos e apreciados, mas guarda boas surpresas. A primeira faixa, “God´s Children”, não fosse o efeito cômico produzido ao se ouvir sua letra quando se conhece a história do filme, seria muito comovente. A canção trata de um dos temas prediletos da banda: a utopia de um retorno à natureza e a crítica à tecnologia desumanizadora.

Em “Apeman”, canção de 1970, os Kinks ironizavam a humanidade comparando-a aos macacos, com vantagem para os últimos. “God´s Children” é mais emocional, mas não menos irônica. Afirma que a humanidade não tem direito de transformar seus filhos em máquinas e que devemos preservar nossos corpos como criados por Deus, afinal, somos filhos d’Ele.

Fora do contexto do filme, “God´s Children” pode trazer lágrimas aos olhos dos religiosos e irritar os ateus, defensores da tecnologia. No contexto, é impossível não rir ao ouvi-la enquanto o bravo Erwin caminha pelas esquinas de Londres balançando seu bilau recém transplantado.

Mas as canções que se seguem (entre faixas instrumentais, inclusive uma versão de “Lola”) fazem crer que os Kinks realmente acreditam na letra de “God´s Children”. “The Way We Used To Be”, belíssima, fala do amor perdido, de como ele costumava ser. Um amor que cria um espaço próprio, uma esfera que protege os amantes do mundo, esse lugar duro, cínico e indesejável.

“Moments” segue na mesma trilha. Nela, um amante pede ao outro para que esqueça tudo o que fizeram de errado e pense apenas nas coisas boas, nos momentos em que a felicidade foi possível; em que ela era extática, ou seja, levava ao êxtase. “Animals at the Zoo”, logo a seguir, compara os seres humanos a animais no zoológico, retomando os temas de que falamos acima. Vale a pena ler a letra.

You’re just an animal in the zoo/ Sittin’ round feeling persecuted and abused/ You’re locked up and I’m on the loose/ But I can’t quite tell who’s looking at who/’cause I’m an animal, too (...)

Você não passa de um animal no zoológico/ Sem fazer nada, perseguido e abusado/ Você está preso e eu estou solto/ Mas não sei quem olha para quem/ Pois sou um animal também (...)

God made the heaven and the deep blue sea/But man picked the flowers and he pulled up the trees/God made the moon and the rain and the sun/But man made the money and the bombs and the guns/So we’re all animals, too(...)

Deus fez o céu e o mar azul/O homem colheu as flores e arrancou as árvores/Deus fez a Lua, a chuva e o Sol/O homem o dinheiro, as bombas e as armas/ Somos todos animais também (...)

I’m a prisoner but I got no cage/ I’m locked up but I got no chain/ But the good guys lose and the bad guys win/That’s why you’re looking out and I’m looking in/But we’re all animals, too (...)

Sou um prisioneiro sem jaula/ Estou preso, mas sem correntes/Os caras legais perdem e os maus sempre vencem/Por isso você está olhando para fora e eu para dentro/ Mas somos todos animais também (...)

Como eu disse acima, “Percy” é um dos álbuns menos conhecidos e apreciados dos Kinks. Feito em poucos meses; serviu para cumprir um contato com o qual a banda não estava satisfeita. Mesmo assim, vale a pena. Ao longo de sua carreira, a banda fez vários álbuns conceituais, tratando de política e de temas da atualidade, inglesa e mundial.

Em “Percy”, aproveitando o argumento do filme, os Kinks mostram, como toda sua força, sua face de críticos da tecnologia e da civilização, sempre com ironia e sem apostar no amor como saída. Apenas os Talking Heads no maravilhoso “Blind” de 1988 fariam algo tão forte ao cantar, também ironicamente, uma volta à natureza que incluía a destruição de estacionamentos e lojas do 7-Eleven.

A ironia, tanto nos Kinks quando no disco dos Talking Heads, está no fato de que essa volta à natureza, além de impossível, não é uma promessa de felicidade. Somos todos animais, portanto, devemos voltar para a selva. É isso o que merecemos.