24 fevereiro, 2007

Psicodelia, peso e black music [Erasmo Carlos 1971-1976]

:: Rodrigo Celso

Estamos acostumados a pensar em Erasmo Carlos como um coadjuvante ou uma espécie de sombra ou paródia do Rei, Roberto Carlos. Bom, fiquem sabendo: o cara tem uma obra original, à disposição para garimpagem em duas caixas que, juntas, somam 21 CDs. Quem se debruçar sobre os discos não vai se arrepender, especialmente se estiver interessado na atual onda de psicodelia que levou Os Mutantes a Londres e produziu coisas como o Of Montreal.

A trajetória de Erasmo pode ser dividida em três fases, a Jovem Guarda, que vai até 1970; uma fase psicodélica-hippie-black music, 1971 a 1976 e, finalmente, a fase POP dos anos 80 em diante. O disco de 1978, "Pelas esquinas de Impanema" é meio difícil de classificar.

Bem, vamos esquecer os extremos, Jovem Guarda e POP, menos interessantes para quem gosta de rock, e ficar com a fase intermediária formada por quatro álbuns impressionantes “Carlos, Erasmo...” (1971), “Erasmo Carlos: Sonhos e Memórias 1941-1972” (1972), “1990- Projeto Salva Terra” (1974) e “Banda dos Contentes” (1976).

Caro leitor, por favor, eu peço: ouça esses quatro discos o mais rápido possível. Esqueça da fama de brega de Erasmo, das canções melosas que ele compôs com o Rei, esqueça sua fase POP, com méritos inegáveis (como nos fez ver, entre outros, Marina Lima), mas que também produziu músicas pavorosas. Esqueça, inclusive, das letras ingênuas da Jovem Guarda, muito próximas da bobagem “She loves you, yeah, yeah, yeah!” dos The Beatles, ainda vivendo na ante-sala do que iriam se tornar. Esqueça tudo isso e simplesmente ouça os discos.

Eu ouvi e quase caí para trás.

São impressionantes pelas letras, pelos temas, pelo instrumental, pelos arranjos. Não dá para falar de todos os seus aspectos nesse espaço. Está tudo ali: The Who, The Beatles, Santana, Rolling Stones, Mutantes etc mais toneladas de black music, com todo o respeito, dez vezes mais interessante do que o superestimado “Tim Maia Racional”, disco desconexo e sem força, que vale mais pela história da maluquice religiosa do Síndico do que pelo seu valor musical.

Erasmo canta a mulher liberada e insubmissa em “Não te quero santa”, o amor carnal, a cumplicidade sexual em “Dois animais na selva suja da rua”, a mulher inquieta e intelectualizada em “Ciça, Cecília” entre outras coisas. Destaco “É preciso dar um jeito meu amigo”, música genial que fala das dificuldades da vida com um sabor funk, rasgado por um dos riffs de guitarra mais empolgantes de toda a história do rock brasileiro, tudo isso sustentado por uma levada de bateria à la Keith Moon. Vejam: eu disse tudo isso e nem saí do álbum de 1971.

Nessa fase da carreira, Erasmo tem o domínio de suas influências e temas, ou seja, encontrou seu som com um time de músicos de rock excepcionais. Mesmo quando erra em canções mais fracas, está trabalhando para criar seu próprio som, um funk-rock viajante, às vezes mais psicodélico, às vezes mais pesado, mas sempre com letras diretas e concisas, dotas de refrões poderosos e extremamente melódicos. Há canções que destoam do padrão, alguns sambas principalmente, mas a unidade estética dos discos (especialmente os três primeiros) é impressionante. Diga-se: várias dessas músicas foram escritas em co-autoria com o Rei.

O álbum de 1976, “Banda dos Contentes” retoma um rock mais simples e mais cru, centrado no trinômio guitarra, baixo e bateria, mas sem cair no banal. As bases são bem trabalhadas e as letras ganham um senso de humor ausente nos álbuns anteriores, mas .... cara, chega de falar!

Corra para o eMule, corra para a loja de CDs mais próxima, corra para a coleção de LPs do seu pai, tio, avô ... sei lá! Se tudo falhar, venha tomar uma cerveja aqui em casa, mas não termine o dia de hoje sem ouvir esses discos excelentes de Erasmo Carlos.