17 fevereiro, 2007

Sua mamãe já quis te ver morto

Se alguém me perguntar o que me faz gostar de ouvir Rock, o que ele tem de especial em relação a outras formas musicais, eu diria que é a sua capacidade de expressar o ódio na sua forma mais crua: vontade de matar. Em outros estilos, é tudo muito mediado, são muitas palavras, muitas notas, muita enrolação. Só uma canção de Rock é capaz de fazer borbulhar meu sangue e trazer rapidamente à tona sentimentos muito primitivos.

Nesse aspecto, o Rock deve muito ao punk, uma construção social que durou décadas (de "Helter Skelter" dos Beatles, The Kinks etc, passando por Velvet Underground, Stooges e MC5; Ramones, Clash e Sex Pistols; Pixies e Atari Teenage Riot) e acompanhou o embrutecimento e mercantilização do mundo, bem como o esvaziamento relativo das instituições políticas. Quanto mais os cidadãos se sentem longe do poder, quanto mais dominados e impotentes, mais aumenta a vontade de mandar tudo à merda, aumenta a vontade de matar ao invés de votar, protestar, negociar. “No future for you!”

Sem o punk o Rock teria morrido na década de 70. Ele sempre se alimentou dos sentimentos e da insatisfação dos jovens de classe média e proletários. Foi assim desde o começo, na década de 50. O punk simplificou brutalmente o Rock (naquela época domindo pelo Rock progressivo que dialogava com a música sifônica) e, paradoxalmente, aumentou sua capacidade de figuração. Fez com que qualquer um se sentisse capaz de comprar instrumentos baratos e começar sua banda. Bastava saber duas notas. Com o aumento crescente da jornada de trabalho, das distâncias percorridas nas grandes cidades, a população tem cada vez menos tempo livre: como aprender a tocar bem um instrumento?

Grandes músicos de chorinho e samba saíram e ainda saem das classes pobres. Mas a impressão é que isso acontece cada vez menos e se deve a uma certa “classe média baixa” que se forma na periferia em razão da massificação da produção e do consumo. Fazer Rock, Funk e Rap é mais fácil. Quantos anos de estudo são necessários para aprender uma grande canção de Pixinguinha, Tom Jobim, Chico Buarque ou Caetano? Sempre haverá os meninos e meninas que nascem sabendo fazer música: pegam um instrumento e simplesmente saem tocando. Mas essas são exceções que confirmam a regra.

Por essas e por outras, a MPB, já na década de 60 e 70, foi um fenômeno de classe média, da pequena burguesia, que tem tempo livre para aprender música. Já nessa época, a música comercial foi empobrecendo, se industrializando e massificando o Rock, o Funk, o Rap e outras formas musicais cuja construção e execução são mais fáceis.

A própria MPB sofreu com isso e produziu coisas como "Realce" de Gilberto Gil entre outros discos de baixa qualidade musical. Vinicius de Morais juntou-se a Toquinho (depois de ser parceiro de Baden e Tom Jobim...) e produziu as coisas mais medonhas de sua carreira. E assim em diante... Por isso mesmo, foram sendo criadas cisões entre a música comercial e a música de vanguarda, alternativa: aconteceu o mesmo em todos os estilos musicais.

Na maior parte das vezes, vanguarda quer dizer simplesmente música de qualidade. Às vezes o POP nos surpeeende; normalmente é só lixo. De outra parte, bons músicos de vanguarda servem de modelo para "estilos" de sucesso no mercado, afinal, o mercado sempre precisa de um novo "hype". Assim, nesse passo repetitivo, que alterna incursões pela vanguarda e pelo mercado, foi seguindo a indústria musical... até surgir a internet. Esse é um fato novo que aumentou e estilhaçou o mercado em mil pedacinhos, abrindo espaço para novos centros de poder econômico e simbólico. Mas não vou tratar disso aqui. Fica para outra.

Retomando nosso fio, claro, estamos falando em geral: há gênios em todos os estilos, capazes de transformar formas sem graça e repetitivas em canções impressionantes. É só ver o que Stevie Ray Vaughan fez com o Blues, moribundo. De qualquer forma, esses artistas tendem a ficar na margem da indústria cultural. O padrão geral caiu. Hoje, todos tocam menos e pior.

Mas há um outro lado da moeda. A aliança entre custo baixo dos instrumentos (resultado da massificação da produção e do consumo) e facilidade técnica na execução fazem do Rock, do Funk e do Rap antenas muito sensíveis ao que acontece em grande parte da sociedade. A MPB, cada vez mais, torna-se marginal e elitizada. Como a poesia, ela fala para muito poucos. Os que importam, alguns diriam. Pode ser... Mas o fato é que o aumento de sofisticação e sutileza traz como contrapartida dificuldades na comunicação.

A sofisticação pela sofisticação pode resultar na incapacidade total de comunicação com a “sociedade”. O que não é um problema em si: tudo depende do público com que se quer falar. Quantas pessoas leram poetas altamente sofisticados como Paul Celan? Muito poucas, mas seu trabalho pela cultura não é irrelevante, é simplesmente diferente daquele desempenhado por Bob Dylan, Jim Morrison, Johnny Rotten, Black Francis, Thom Yorke, Alec Empire.

Numa sociedade menos desigual, em que as pessoas fossem mais letradas, provavelmente Paul Celan atingiria mais leitores. Mas mesmo num mundo como esse Johnny Rotten não seria menos importante para a cultura. Porque às vezes nos sentimos arrebatados por essa vontade estranha de simplesmente matar alguém. Assim, sem explicação e sem mediação: um sentimento cru e angustiante, muito difícil de compreender e aceitar. Não há verso sofisticado ou melodia complexa que dê conta dele; que consiga aplacar essa vontade de destruir tudo o que mais amamos.

Muitos torcem o nariz para isso. Vêm nessa fúria algo de arcaico, que é preciso esconder e cercar de mediações. Claro, para viver em sociedade, para levar a vida adiante, é preciso fazer tudo isso. Do contrário, estaríamos nos matando uns aos outros. Mas na música, na arte, não. Nesse campo, matar é permitido e pode ser muito saudável. Iggy Pop formulou isso expressamente numa entrevista ao revelar que sua música, na época dos Stooges, era muito influenciada pelo interesse em rituais tribais africanos. Os surrealistas falaram disso expressamente.

O Rock tem sua parte nessa história. Especialmente após o punk, tornou-se capaz de falar de sentimentos de que nenhum outro estilo musical é capaz de falar. Por isso, ainda hoje, assusta e enoja muita gente. Afinal, é preciso muitos anos de análise para aceitar que nossos pais nutrem por nós não apenas amor, mas também ódio.

Em "Psicose" de Alfred Hitchcock, o filho se veste como sua mãe para cometer os assassinatos, na figuração contemporânea mais assustadora do ódio materno aos filhos. O homem feroz, travestido de mulher, mata para conseguir suportar a visão do desejo de matar que um dia divisou nos olhos vidrados de sua amável mamãe.

Não se iluda: sua mãe já quis te ver morto. E você vai querer assassinar seus filhos.

:: postado por Rodrigo Celso – eugarimpo@hotmail.com