10 março, 2007

A internet à serviço da criatividade [Einstürzende Neubauten e o mercado crítico]

:: Rodrigo Celso

Esta semana o mundo da música recebeu uma péssima notícia: o projeto experimental Musterhaus da banda Einstürzende Neubauten foi cancelado após dois anos e oito CDs. O Musterhaus é a face mais radical de uma experiência que a banda desenvolve desde 2004 e que continua, apesar de todas as dificuldades. Trata-se de um modelo de financiamento e produção musical inédito, caracterizado pela re-apropriação dos meios de produção pelos músicos: a internet à serviço da criatividade.

Os estudiosos dizem que a internet se desenvolveu, de fato, quando começou a ser utilizada para fins comerciais e isso parece corresponder à verdade. Mas o comércio é apenas uma das dimensões da rede. O Einstürzende nos mostra que a internet pode ser utilizada não apenas para ganhar dinheiro, mas para os fins da criação artística. O que está em jogo aqui, veremos, é a construção de um “mercado crítico” à serviço não do capital, mas dos objetivos fixados pelos criadores.

Antes de prosseguir, uma pausa: para quem não conhece a banda, vale a pena. O grupo surgiu na antiga Alemanha Ocidental no movimento chamado de “rock industrial”. Seus primeiros discos são de uma radicalidade impressionante: letras densas e violentas acompanhadas pelo som de maquinário industrial. Difícil de ouvir, difícil de suportar (como estar vivo...).

É impossível resumir o que veio depois: experimentações as mais variadas; inclusive uma versão impressionante da peça Hamletmaschine de Heiner Müller e um Fausto, ambos disponíveis em CD. A nova experiência desta banda singular é o projeto subversivo que vou comentar aqui.

Funciona assim: você paga 35 Euros (65 se também quiser o DVD) e, no final do ano, recebe um CD inédito que não será comercializado nas lojas. Além disso, ao longo desse período, a banda faz ensaios e seções de gravação ao vivo on line, que ficam arquivadas no site, e libera demos e versões alternativas das músicas. Na condição de fã-mecenas, pode-se ter acesso a fórum permanente que recolhe opiniões sobre o processo de composição das músicas, entre outras coisas.

Paralelamente a este projeto, ainda em funcionamento, havia o Musterhaus, infelizmente interrompido, que veiculava as experiências musicais da banda em quatro CDs anuais (também mediante pagamento). Este ano estava previsto um CD com emissões vocais, a gravação de ruídos de pessoas comendo, entre outras experimentações sonoras.

O Musterhaus levava ao extremo a lógica do projeto: aqui os fãs pagavam para a banda fazer, literalmente, o que lhe desse na telha. "Tudo o que é bom dura pouco", disse a banda no email que avisou seus fãs sobre o fim do projeto, "por isso temos o orgulho de anunciar que o Mustehaus está cancelado".

O processo de integração entre fãs e banda; processo criativo e público, consumidor e produto chegou ao limite no último grande show do Einstürzende. Nele, foi organizado um coral de 100 fãs-mecenas para cantar, ao vivo, no Alten Palast em Berlim.

O edifício, remanescente da antiga Alemanha Oriental, foi demolido após o espetáculo. E não foram apenas as pedras que um dia sustentaram as estruturam da Alemanha dividida que tombaram nesse dia. O Einstürzende tem potencial para mais destruição. Em sua mira agora está o mercado de música e a atividade de criação musical como nós a conhecemos.

Todos sabemos dos efeitos da internet sobre a venda de CDs e sobre o hábito de ouvir música. É uma história antiga: os programas para compartilhar arquivos musicais provocaram a crise na venda de CDs e ações judiciais (até agora perfeitamente inúteis) para tentar conter algo que é mais do que uma mudança no meio físico para a veiculação da música. Trata-se da alteração da base tecnológica que impulsiona o mercado musical.

Quem conhece a história do movimento operário sabe que os Luddistas eram um grupo radical que destruía máquinas para evitar a mecanização da indústria. Tiveram sucesso por muitos anos e chegaram, de fato, a ameaçar a evolução do capitalismo. Hoje, os novos Luddistas da música tentam conter as possibilidades comerciais e criativas da internet, mas em vão. Para cada Kazaa que sai do ar, surgem outros, mais simples, mais fáceis de utilizar e mais interessantes.

O Einstürzende Neubauten e seu projeto de “fãs-mecenas” traz a discussão da internet para um patamar inédito. Acrescenta ao debate comercial a dimensão política ligada diretamente à criação artística. Fique claro: o que eles estão fazendo é um empreendimento comercial, sem dúvida. A banda tira proveiro da internet para atingir consumidores no mundo todo, inclusive este que vos fala, algo difícil de se fazer por outros meios.

A segmentação do mercado sustenta o projeto e a facilidade tecnológica o viabiliza: paga-se pelo Pay Pal, com cartão de crédito, e recebe-se os CDs em casa, com todo o conforto. O site funciona perfeitamente bem, os downloads são fáceis e os vídeos carregam sem problemas.

Mas, além de um empreendimento comercial, trata-se de uma experiência artística que procura aproximar os criadores do público. E ela só é possível em razão da apropriação dos meios de produção pelo artista, que cria (em parte ao vivo), produz e vende seu produto em escala mundial, sem intermediários. Essa ação radical coloca o criador na dependência direta de seus fãs e, mais do que isso, vai demolindo as barreiras que existem entre os dois pólos.

Pode-se acompanhar, ao vivo, a criação das músicas, ensaios, seções de gravação e conversar sobre o processo. O acesso às demos e a versões alternativas é imediato para quem pagou: não vai haver lançamentos caça-níquel no futuro de gravações quase inaudíveis e sem qualquer importância, feitas apenas para extorquir dinheiro de fãs alucinados.

Além disso, o processo de criação musical fica desmistificado e se torna acessível para a apreciação dos fãs. Num dos ensaios que vi, a mesma canção foi repetida à exaustão, com variações na linha do baixo e no som da bateria, até que se alcançasse um resultado satisfatório. Não são gênios trabalhando, mas operários a serviço de sua visão artística.

Quando vi o show no Alten Palast com aqueles 100 fãs cantando no palco, confesso que fiquei emocionado. Num mundo tão sem esperança e ousadia, marcado pela mera adaptação às necessidades do mercado, é impressionante ver alguém usar a inteligência e a criatividade para colocar as ferramentas tecnológicas e comerciais à disposição à serviço da arte.

O projeto do Einstürzende revela uma compreensão muito profunda do que está acontecendo no mundo e deve ser objeto da reflexão de todos nós. Não é uma negação infantil do comércio e do capitalismo, nem a defesa ideológica dos poderes mágicos da internet e da liberdade para se desrespeitar os direitos de autor.

Fique claro: a banda não abre mão de ganhar dinheiro com a autoria de suas músicas. O que eles estão fazendo não se encaixa nem no estrito business, nem no discurso "libertário", às vezes meio ridículo, dos que defendem simplesmente o fim dos direitos do criador sobre sua obra.

Sou obrigado a lembrar a esses “libertários” que o fim do direito à autoria é a consolidação da condição operária. O operário não tem direito de se reconhecer no produto de seu trabalho, nem de ganhar com sua comercialização. Trabalha para comer e deve se contentar com isso.

A ousadia do Einstürzende Neubauten nos permite sair dessa camisa de força ideológica e pensar para além. É inspirador, é subversivo, incomoda a direita do business e a esquerda "libertária". Este efeito contraditório o torna tema obrigatório para qualquer interessado em refletir sobre o mundo de hoje.

Seja-me permitida uma frase para iniciados: onde quer que esteja, Walter Benjamin deve estar rindo, satisfeito com o Einstürzende. A banda compreendeu que, para ser artista nesse mundo, é preciso incorporar ao processo de criação a base material que a torna possível.

Enfim, espero que esta iniciativa não passe despercebida e motive outras ações, outras soluções para a o problema da arte sob o capitalismo. O Einstürzende está fazendo sua parte, tentando viabilizar institucionalmente a possibilidade de colocar a criatividade também à serviço da arte e não apenas da produção de lucro.

Diga-se: a produção de lucro, necessária para que qualquer atividade funcione, é um objetivo secundário e instrumental quando a questão é produzir boa música. Antes a criação, depois o capital; antes o valor de uso, depois o valor de troca.