:: Rodrigo Celso
para Lisa Simpson
O único defeito do livro “Rádio guerrilha: Rock e Resistência em Belgrado” de Matthew Collins [ed. Barracuda, 2006] é que o título em português não traduz corretamente seu conteúdo.
A tradução literal do título em inglês, apesar de menos empolgante, é mais adequada “Aqui é a Sérvia chamando: o rock’n’roll e a resistência underground de Belgrado”.
O livro não trata apenas da história da rádio B92 e do sentido do rock como resistência à ditadura de Milošević. É uma breve história contemporânea da Iugoslávia e dos movimentos de resistência à ditadura do ponto de vista dos jovens intelectualizados. A rádio B92 ocupa um papel importante nos acontecimentos da época, mas está longe de ser a única protagonista.
O livro é imperdível para quem gosta de rock e para quem se interessa pelo mundo contemporâneo. Tudo aconteceu na Europa da década de 90: Slobodan Milošević, um ditador conservador e sangrento toma o poder e instaura uma ditadura nacionalista e xenófoba, que além de destruir a oposição política, também se preocupa em destruir a diversidade artística. É criada uma estética oficial, o “turbo-folk”, que valorizava elementos folclóricos, o nacionalismo e o amor romântico.
Como nos informa o livro de Matthew Collins, alguns roqueiros aderiram ao regime e se tornaram artistas oficiais. Foi apenas um certo tipo de rock, de climas depressivos e postura contestadora, que foi explicitamente reprimido, afinal, depressão e contestação não combinavam com o tom belicoso e altivo de uma ditadura triunfante.
300 mil pessoas saíram da Sérvia nessa época; na maior parte, gente educada e esclarecida: a classe média, que iria tentar melhores oportunidades no exterior. Para um país de menos de 7 milhões de habitantes é uma enormidade, é assombroso, é um desastre. É como se a classe intelectualizada das capitais brasileiras saísse do Brasil, deixando aqui apenas alguns remanescentes.
O líder da banda punk Elektricni Orgazam, Goram Cavajda (morto no final dos anos 90), disse explicitamente num documentário produzido pela B92: “Faço parte da geração que deixou de existir”. É assombroso pensar que, nessas palavras, não há nada de poético, não há nada de metafórico.
Foi exatamente isso que aconteceu: uma geração inteira de jovens intelectualizados desapareceu do país. Goram Cavajda viu a maioria de seus amigos indo embora. Viu grande parte daqueles que poderiam resistir, política e esteticamente, à ditadura de Milošević, tomarem o avião e deixarem a Sérvia para sempre. Disse Goram:
“Meus amigos acreditam cada vez menos que voltarão um dia. Sabem que aqui só encontrarão coisas ruins e decadência. O que os desanima acima de tudo é que a cidade que deixaram não existe mais, apenas as lembranças”.
Surpreendentemente, houve sim resistência, especialmente depois da fraude nas eleições em 1996, que manteve Milošević no poder. Foi nessa época que a rádio B92 se tornou referência para músicos, artistas e estudantes que resistiam ao regime. Como resposta ao fechamento da rádio, houve protestos de amplo alcance, inclusive internacional, pois já havia o valioso recuso da internet. Resultado: o regime voltou atrás e suas ações fizeram duplicar a audiência da B92.
Nos anos seguintes, o governo endureceu o cerco à mídia independente, aprovando leis restritivas e, inclusive, interferindo no sinal das rádios. Esse silêncio imposto aos meios de comunicação permitiu a Milošević promover sua política de limpeza ética quase sem ser notado. A rádio B92 é fechada, mas volta a funcionar precariamente, transmitindo apenas 12 horas por dia. Mesmo assim, atinge o terceiro lugar em audiência em Belgrado.
Há muitas outras histórias nesse livro, que se desdobram até a queda da ditadura. Todas elas me fazem pensar na força e no perigo que a liberdade de pensamento pode representar para regimes autoritários, de esquerda ou de direita.
Não há ditador que suporte ou resista à liberdade de expressão e à liberdade artística. Ditaduras trabalham com massas compactas e idéias indiscutíveis: a afirmação do singular, do subjetivo lhes é insuportável. Mesmo a oposição das classes intelectualizadas, que quase sempre tem um impacto social muito reduzido, deve ser duramente reprimida.
Um filósofo alemão, Theodor Adorno, no texto "Lírica e Sociedade", disse que “nenhum regime totalitário poderia suportar” um poeta como Garcia Lorca pela afirmação radical de sua subjetividade, presente em poemas prenhes de imagens inusitadas e sensuais.
A mesma lógica de repressão à subjetividade motivou a ditadura de Milošević a combater bandas como o Darkwood Dub, inspirada no Sonic Youth, cuja música se caracteriza por climas depressivos a atmosferas de fim do mundo. "Como você pode ficar aí se deprimindo", diriam os autoritários, "se há tanta coisa para se fazer em prol de seu país?".
Suportar a subjetividade não é difícil apenas para regimes autoritários. Ela é difícil para qualquer instituição, de esquerda ou de direita. Uma empresa, para funcionar bem (dizem) precisa da adesão de seus funcionários à sua “filosofia”, à sua “missão”, à visão do “líder”. Por isso, não faz sentido que os empregados adotem uma postura “conflitiva”: é preciso que todos colaborem para atingir "fins comuns".
Se é verdade que não se faz nada sem algum grau de colaboração, a exigência de uniformidade de pensamento e conformismo, às vezes, chega a graus patológicos e autoritários. Fiquei sabendo recentemente, por uma fonte de primeira mão, que um grande banco estrangeiro que opera no Brasil exigiu de seus altos executivos que queimassem, numa cerimônia pública, cartões de débito e crédito com bandeira de outros bancos. Tudo isso acompanhado pela trilha sonora de slogans que celebravam o espírito de equipe e a lealdade à empresa que paga seus salários.
A liberdade de pensar era perigosa na Sérvia da década de 90 e é perigosa no Brasil de hoje. Quem assiste aos Simpsons se lembra do episódio "Lisa, a vegetariana"(veja partes 1, 2, 3, 4) em que a professora de Lisa Simpson toca um alarme quando a menina ousa, em plena sala de aula, expor pensamentos diferentes do senso comum. Uma sirene dispara na sala do diretor Skinner, o "alarme do pensamento independente", alertando-o da presença em sua escola de alguém com idéias originais.
Ao que tudo indica, pensar por si próprio e questionar idéias estabelecidas nunca será uma atividade vista com bons olhos. A filosofia ocidental tem na morte de Sócrates, um questionador por excelência, um de seus atestados de nascimento. Lisa Simpson seguiu seu exemplo; talmbém a resistência sérvia à ditadura. Ao que tudo indica, a presença constante do pensamento divergente é sinal de que estamos diante de uma democracia.
A imposição de uma música uniforme, de idéias uniformes; a defesa cega de uma estética ou de determinadas idéias políticas me faz sentir muito desconforto. A repressão ao divergente, mesmo na esfera privada, mesmo entre amigos e colegas de trabalho, me faz pensar que a possibilidade de novas ditaduras como a de Milošević ainda está viva no mundo de hoje.
O clima político atual, marcado pela intolerância, que nos cerca de todos os lados, me faz crer que será necessário percorrer um longo caminho até que os seres humanos realmente se acostumem com a diversidade de idéias e opiniões.
Não é fácil para ninguém viver diante da possibilidade constante de ser contrariado, de ver suas idéias confrontadas e desacreditadas. No entando, viver assim parece ser a única garantia contra o autoritarismo, contra a massificação de doutrinas únicas, contra a repressão a tudo que é particular e original.
Às vezes me angustia pensar que a morte de Sócrates não tenha ensinado nada ao ocidente "civilizado". Um ocidente liderado por George Bush, representante do fundamentalismo religioso, e dominado pela ideologia fundamentalista neoclássica dos mercados livres.
Ler a história dos resistentes sérvios em “Rádio guerrilha: Rock e Resistência em Belgrado” alivia um pouco essa sensação ruim. Afinal, trata-se da história de pessoas que valorizam a liberdade e o pluralismo. No mundo de hoje, isso não é pouca coisa.
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