O documentário “Lóki” sobre Arnaldo Baptista que acaba de estrear em SP na Mostra Internacional de Cinema não fala de música. Se você está interessado no assunto, poupe-se de vê-lo. O filme pretende dar ênfase ao lado “humano” de Arnaldo e, para fazê-lo, deixa completamente de lado aquilo que é central para a existência de seu personagem: sua música. Um “detalhe” mostra isso com clareza: em nenhuma das diversas entradas de Arnaldo, entrevistado em sua casa em Juiz de Fora, o documentário se dá ao trabalho de mostrar os instrumentos do músico, personagens centrais para a história da maior banda de rock que o Brasil já teve, Os Mutantes, para a sua carreira solo e para sua existência. Quem já ouviu Arnaldo falar sabe que não há assunto que o apaixone mais do seus instrumentos musicais e a captação valvulada.
Quem leu Verdade Tropical de Caetano ou a biografia dos Mutantes escrita por Carlos Calado sabe que o som da banda dependia diretamente dos instrumentos, efeitos e amplificadores que eles utilizavam. Os instrumentos valvulados que o músico utiliza até hoje e as caixas “fuzz” construídas pelo irmão de Arnaldo, César, aparecem no filme na boca de Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, numa entrevista durante o Rock in Rio, em que ele declara sua admiração por Arnaldo; numa fala do próprio Arnaldo em Londres, 2006, reclamando dos amplificadores “estranhos” com os quais ele foi obrigado a tocar no Barbican Center e num quadro que Arnaldo vai pintando ao longo de todo o filme e só aparece terminado no final.
O documentário não presta nenhuma atenção nisso, passando batido também pelas referências musicais presentes nas falas dos vários entrevistados, especialmente os músicos. Tais referências não têm importância nenhuma para a narrativa e, por isso, reduzem-se a frases de almanaque, sem qualquer preocupação de contextualização ou discussão mais detalhada. Ficamos sabendo que Os Mutantes e Arnaldo gostavam dos Beatles, faziam um som psicodélico, que passavam uma “alegria”, uma “liberdade” e coisas desse tipo.
Nelson Motta, Lobão e Tom Zé, os entrevistados responsáveis pelas frases mais superficiais do documentário, claro, são os que ganham maior destaque. Sean Lennon, musico de vanguarda e admirador do musico Arnaldo, ganha uns parcos minutos e o produtor responsável por reunir Os Mutantes no Barbican em 2006 (com Zélia Duncan nos vocais), é ouvido apenas na condição de fã, para dizer que a banda é melhor do que os Beatles, ou seja, para reafirmar o lugar comum "os estrangeiros se renderam ao Brasil", numa demonstração constrangedora de provincianismo dos autores do filme. Caetano, autor de analises fundamentais sobre a banda, compositor gravado por ela e companheiro de Tropicalismo, não foi entrevistado e não aparece sequer em imagens de arquivo. Ronnie Von, que pôs o nome na banda e gravou um disco com eles, também não foi entrevistado. Em suma, nada de musica.
Conclusão: ou presumimos que o documentário não está interessado nesse assunto ou somos obrigados a dizer que ele está baseado numa pesquisa pífia e foi feito por gente que não entende e nem quer entender de música. Mas não sejamos ranzinzas: vamos aceitar que o filme quer apenas mostrar o “homem” Arnaldo e não o músico; e esquecer que o próprio documentario afirma, pela boca de vários entrevistados, que especialmente no caso de Arnaldo, vida e obra não podem ser separadas. Mesmo nesse campo, o filme não tem nenhum interesse. Arnaldo aparece como um personagem de novela das 8 ou melhor, de um dramalhão mexicano. Sua vida, suas opiniões, sua visão de mundo ficam em segundo plano, instrumentalizadas em nome dos clichês que estruturam a narrativa. Auge, decadência, redenção em razão do amor; o artista “louco” e ingênuo, incapaz de lidar com o mundo real, transtornado pelas drogas e pela separação de Rita Lee, está tudo lá, apresentado da forma mais óbvia possível. O clichê tem essa capacidade: colocar em segundo plano tudo o que é singular.
“Lóki” foi aplaudido de pé pela platéia da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na seção deste domingo dia 19/10, as 16H20, na sala 1 do Reserva Cultural, portanto, pode ser que, de fato, eu não tenha entendido nada. Mas devo dizer que este foi um dos piores filmes que vi nos últimos tempos, incapaz de dar conta de seu personagem, vida e obra. Espero que no futuro, Os Mutantes e Arnaldo ganhem um retrato melhor. Quem sabe daqui alguns anos: hoje, o rock parece ter ganho algum fôlego no Brasil e temos uma cena com bandas, gravadoras e casas de show. Com tudo isso, talvez seja possível ir formando um público mais bem informado, à altura desta banda que, ainda hoje, parece ter descido de Marte, como afirmou Caetano Veloso em seu livro. Por enquanto, o Brasil continua indigno deles. Nesse sentido, o documentário é exemplar: pelos aplausos efusivos do publico, podemos supor que o que interessa mesmo aos brasileiros é o dramalhão. Se for assim, fiquem felizes e fartem-se. Arnaldo Baptista, este sim, merece todos os aplausos.
Quem leu Verdade Tropical de Caetano ou a biografia dos Mutantes escrita por Carlos Calado sabe que o som da banda dependia diretamente dos instrumentos, efeitos e amplificadores que eles utilizavam. Os instrumentos valvulados que o músico utiliza até hoje e as caixas “fuzz” construídas pelo irmão de Arnaldo, César, aparecem no filme na boca de Kurt Cobain, vocalista do Nirvana, numa entrevista durante o Rock in Rio, em que ele declara sua admiração por Arnaldo; numa fala do próprio Arnaldo em Londres, 2006, reclamando dos amplificadores “estranhos” com os quais ele foi obrigado a tocar no Barbican Center e num quadro que Arnaldo vai pintando ao longo de todo o filme e só aparece terminado no final.
O documentário não presta nenhuma atenção nisso, passando batido também pelas referências musicais presentes nas falas dos vários entrevistados, especialmente os músicos. Tais referências não têm importância nenhuma para a narrativa e, por isso, reduzem-se a frases de almanaque, sem qualquer preocupação de contextualização ou discussão mais detalhada. Ficamos sabendo que Os Mutantes e Arnaldo gostavam dos Beatles, faziam um som psicodélico, que passavam uma “alegria”, uma “liberdade” e coisas desse tipo.
Nelson Motta, Lobão e Tom Zé, os entrevistados responsáveis pelas frases mais superficiais do documentário, claro, são os que ganham maior destaque. Sean Lennon, musico de vanguarda e admirador do musico Arnaldo, ganha uns parcos minutos e o produtor responsável por reunir Os Mutantes no Barbican em 2006 (com Zélia Duncan nos vocais), é ouvido apenas na condição de fã, para dizer que a banda é melhor do que os Beatles, ou seja, para reafirmar o lugar comum "os estrangeiros se renderam ao Brasil", numa demonstração constrangedora de provincianismo dos autores do filme. Caetano, autor de analises fundamentais sobre a banda, compositor gravado por ela e companheiro de Tropicalismo, não foi entrevistado e não aparece sequer em imagens de arquivo. Ronnie Von, que pôs o nome na banda e gravou um disco com eles, também não foi entrevistado. Em suma, nada de musica.
Conclusão: ou presumimos que o documentário não está interessado nesse assunto ou somos obrigados a dizer que ele está baseado numa pesquisa pífia e foi feito por gente que não entende e nem quer entender de música. Mas não sejamos ranzinzas: vamos aceitar que o filme quer apenas mostrar o “homem” Arnaldo e não o músico; e esquecer que o próprio documentario afirma, pela boca de vários entrevistados, que especialmente no caso de Arnaldo, vida e obra não podem ser separadas. Mesmo nesse campo, o filme não tem nenhum interesse. Arnaldo aparece como um personagem de novela das 8 ou melhor, de um dramalhão mexicano. Sua vida, suas opiniões, sua visão de mundo ficam em segundo plano, instrumentalizadas em nome dos clichês que estruturam a narrativa. Auge, decadência, redenção em razão do amor; o artista “louco” e ingênuo, incapaz de lidar com o mundo real, transtornado pelas drogas e pela separação de Rita Lee, está tudo lá, apresentado da forma mais óbvia possível. O clichê tem essa capacidade: colocar em segundo plano tudo o que é singular.
“Lóki” foi aplaudido de pé pela platéia da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na seção deste domingo dia 19/10, as 16H20, na sala 1 do Reserva Cultural, portanto, pode ser que, de fato, eu não tenha entendido nada. Mas devo dizer que este foi um dos piores filmes que vi nos últimos tempos, incapaz de dar conta de seu personagem, vida e obra. Espero que no futuro, Os Mutantes e Arnaldo ganhem um retrato melhor. Quem sabe daqui alguns anos: hoje, o rock parece ter ganho algum fôlego no Brasil e temos uma cena com bandas, gravadoras e casas de show. Com tudo isso, talvez seja possível ir formando um público mais bem informado, à altura desta banda que, ainda hoje, parece ter descido de Marte, como afirmou Caetano Veloso em seu livro. Por enquanto, o Brasil continua indigno deles. Nesse sentido, o documentário é exemplar: pelos aplausos efusivos do publico, podemos supor que o que interessa mesmo aos brasileiros é o dramalhão. Se for assim, fiquem felizes e fartem-se. Arnaldo Baptista, este sim, merece todos os aplausos.
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